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12 de dez. de 2004

A lanterna do Goya

ZH - 12/10/2004

Goya diz que o único engajamento político que deve se pedir de um artista é o de retratar a estupidez humana e usar sua criação como um testemunho

Uma vez escrevi isto sobre uma visita a Madri em que convoquei o fantasma de Don Francisco de Goya e Lucientes para nos acompanhar. Queria, entre outras coisas, ter Goya ao meu lado quando revisse o Guernica, que eu conhecia do Museu de Arte Moderna de Nova York. O grande quadro, que só pode entrar na Espanha depois da morte de Franco, está numa sala especial do Centro de Arte Reina Sofia. Foi pintado por Picasso em reação ao ataque à cidade basca de Guernica por aviões alemães da Legião Condor durante a Guerra Civil Espanhola, na primeira vez na história em que uma população civil foi metralhada e bombardeada do ar. Guernica não tinha nenhuma importância estratégica, o único objetivo do ataque era espalhar o terror e testar a técnica que os alemães usariam depois, na Segunda Guerra Mundial.


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"E então?" pergunto a Goya. "Bueno, bueno" diz ele, como que fazendo uma concessão. Comento que o engajamento político de Picasso sempre foi muito discutido. Ele foi um comunista notório que depois da Segunda Guerra ajudou a causa de muitas maneiras, e não apenas desenhando a célebre pomba da paz. Mas viveu e trabalhou sem aparentes problemas na Paris ocupada pelos nazistas. Onde um dia, segundo uma história que se não é verdadeira é bem bolada, seu ateliê foi visitado por um oficial alemão que viu uma reprodução do Guernica na parede e comentou "Ah, você fez isso, não é mesmo?" Ao que Picasso teria respondido: "Não, vocês fizeram isso".

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Goya diz que o único engajamento político que se deve pedir de um artista é o de retratar a estupidez humana e usar sua criação como um testemunho, mas respeitando os códigos da arte. Pode-se tomar uma posição clara sem ser convencionalmente óbvio. Durante a ocupação da Espanha pelos franceses a partir de 1808, Goya também foi acusado de colaboracionismo ou de revolta insuficiente. Tinha sido um entusiasta da Revolução Francesa e um admirador de Napoleão. Mas retratou a ocupação francesa como uma manifestação de bestialidade nos seus Desastres da Guerra, gravuras inigualadas na sua pungência - até surgir o Guernica. E nos dois quadros que pintou depois da retirada de Napoleão, El Dos de Mayo, sobre o levante popular contra os invasores na Puerta del Sol, e El Tres de Mayo, sobre a execução de madrileños rebeldes por tropas francesas, não apenas homenageou a coragem e o martírio dos seus concidadãos como mudou a arte da pintura.

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Não existiam cenas de batalha na história da arte como a que Goya pintou em El Dos de Mayo. Não é um quadro épico nem celebratório, nem transmite o objetivismo, que equivale à neutralidade moral, de uma composição bem feita, como nos quadros de guerra pintados até então. É confuso e mal composto, sem um centro ou uma visão abrangente que nos situe na batalha e no seu sentido maior. Pela primeira vez a arte nos diz que nossa percepção histórica é limitada ao cadáver mais próximo, ao horror do detalhe. Estamos na origem da sensibilidade moderna, da fragmentação da experiência, da busca do universal no pessoal e particular. Com suas gravuras, Goya se juntou a Daumier e Hogarth como predecessor do cartum, da charge e da arte jornalística. Com El Dos de Mayo, se juntou a Stendhal, que transformou literatura em reportagem e subjetividade e asco em critérios para olhar a História.

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O quadro El Tres de Mayo é ainda mais extraordinário. Mostra um grupo de guerrilheiros madrileños sendo fuzilados por soldados franceses. Os soldados estão todos de costas, formam uma parede de autônomos sem cara. A principal figura entre as vítimas está com os braços abertos, esperando desafiadoramente as balas, e a evocação do Cristo crucificado é clara, tanto que ele tem o estigma do prego na palma direita. Uma lanterna posta no chão ilumina a cena terrível. Há uma longa tradição de cenas de martírio na arte ocidental e em todas elas a luz de Deus está presente, não importa que sua origem seja o Sol ou uma vela. É uma luz que banha o mártir e lhe garante a benevolência divina e a redenção depois do tormento. A lanterna no quadro de Goya não tem qualquer valor simbólico. Há um mártir e o seu tormento, mas a luz está no chão e sua função é iluminar as vítimas para que as balas não errem o alvo. Nenhuma redenção se seguirá a este martírio, o mundo está dividido apenas entre a sombra, onde outras vítimas esperam a sua vez, e a luz, que serve aos carrascos. A ausência de Deus significa a ausência de qualquer relevância nas mortes retratadas. Nenhuma alegoria redime sua crueza. Milhões morrerão assim, nos anos que virão, na Espanha e no mundo.

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Goya me cutuca com o cotovelo e aponta a lâmpada acesa no topo da composição de Guernica. Picasso pintou a lâmpada como uma representação do pânico, do terror vindo do alto a que todos estavam expostos. Também não é a luz de Deus. "Olha a minha lanterna", diz Goya. Só que agora ela está a serviço da Legião Condor.

Goya diz que o único engajamento político que se deve pedir de um artista é o de retratar a estupidez humana e usar sua criação como um testemunho.

Luis Fernando Verissimo