7 de dez. de 2008

Não existiria Continente se não existisse Ilha

Em 1777 os castelhanos invadiram a Ilha de Santa Catarina. Portugal reagiu. Nascia a oposição Ilha versus Continente. Nossos somos d'O Continente do Érico Veríssimo, que também era de São Pedro. Não teve santo que impedisse, tal qual Abel e Caim, Santa Catarina e São Pedro nasceram se olhando de soslaio. Este Gre-Nal é, ao mesmo tempo, uma relação de amor e ódio, e um não existe sem o outro. Não existiria Continente se não houvesse pelo meno uma Ilha. Dessas dicotomias, desse Caos originário, brotam forças para justificar o empenho de ambos, como vizinhos invejosos.
Para os catarinenses, os gaúchos são imperialistas. E fundamentam: a RBS é gaúcha. Instalou-se em SC como um polvo. Culpa dos gaúchos! Para os gaúchos, nada mais natural, eles bem que merecem um cancro, afinal enquanto a RBS se ocupa em dilapidá-los, esquece deixa os gaúchos em paz. E, enquanto a chicote sobe e desce, o lombo descansa.
O oeste catarinense é gaúcho. Garopaba é uma colônia, um posto avançado para se chegar a Florianópolis, porto-alegrense. Lembra a Cartago fenícia, e a Siracusa grega. Só que o comércio agora atende pelo nome de turismo, descanso de férias. E nada melhor que um Desterro na Ilha.
As Catástrofes
Os pré-socráticos entendiam que o princípio gerador de todas as coisas não derivava de apenas um elemento, mas de quatro, nessa ordem 1 (fogo = Zeus), 2 (ar = Hera), 3 (água = Néstis) e 4 (terra = Hades). Os dois últimos combinados são os principais algozes de Santa Catarina. As enchentes, água, estão no topo da lista, mas é a terra, ao deslizar, é quem soterra. Nenhum filme de terror contém cenas tão dramáticas do que aquelas produzidas pelos eventos naturais, registradas no momento em que estão acontecendo, seja dos deslizamentos em Santa Catarina, seja do Tsunami que varreu a costa da Ásia, no Oceano Índico, com seus quase 300 mil mortos.
Não foi a primeira. Blumenau e mesmo Tubarão já sofreram com o terceiro elemento dos pré-socráticos. Blumenau já sobreviveu a muitas enchentes nos anos de 1911, 1948 , 1974, 1980, 1984, 1992, 2000 e agora 2008. Já em Tubarão, o desastre de 1974 supera em número de vítimas a soma dos desastres de Blumenau.
A Solidariedade
Quase tão comoventes quanto as cenas em que a avalanche de lama engolia casas e carros, foi ver a solidariedade das pessoas próximas ou distantes, conhecidas ou desconhecidas, pobres ou ricas, religiosas ou apóstatas.
São momentos que justificam a fé nas pessoas, nas quais devem estar centras as atenções das instituições, sejam de que nível for. Oportunidade ímpar para ver desnudo o deus Mercado, seduzindo seu seguidor para cobrar 10 reais por um litro de água. De nada vale a vida para aqueles que tem a medida de todas as coisas no lucro a qualquer preço.
A catástrofe também serviu para manifestações que transcendem os acontecimentos. São registros que emocionam e mantém nosso otimismo de que a humanidade tem jeito, sim, inclusive entre gaúchos e catarinenses... Como estas que recebi por email:
DEPOIMENTO CIDADÃO DE ITAJAÍ (Sta. Catarina)
"Hoje 27 de novembro de 2008 o sol saiu e conseguimos voltar a trabalhar em Itajaí. A despeito de brincadeiras e comentários espirituosos normais sobre esta "folga forçada" a verdade é que nunca me senti tão feliz de voltar ao trabalho. Não somente pelo trabalho, pela instituição e pela própria tranqüilidade de ter aonde ganhar o pão, mas também por ser um sinal de que a vida está voltando ao normal aqui na nossa cidade.
Por mais que teorias e leituras mil nos falem sobre isso ainda é surpreendente presenciar como uma tragédia desse porte pode fazer aflorar no ser humano os sentimentos mais nobres e os seus instintos mais primitivos. As cenas e situações vividas neste final de semana prolongado em Itajaí nos fizeram chorar de alegria, raiva, tristeza e impotência.. Fizeram-nos perder a fé no ser humano num segundo, para recuperar-la no seguinte. Fez-nos ver que sempre alguém se aproveitará da desgraça alheia, mas que também é mais fácil começar de novo quando todos se dão as mãos.
Que aquela entidade superior que cada um acredita (Deus, Alá, Buda, GADU etc.) e da forma que cada um a concebe tenha piedade daqueles:
 - Que se aproveitaram a situação para fazer saques em Supermercados, levando principalmente bebidas e cigarros;
- Que saquearam uma farmácia levando medicamentos controlados, equipamentos e cofres e destruindo os produtos de primeira necessidade que ficaram assim como a estrutura física da mesma.
- Que pediam 5 reais por um litro de água mineral.
- Que chegaram a pedir 100 reais por um botijão de gás.
- Que foram pedir donativos de água e alimentos nas áreas secas pra vender nas áreas alagadas.
- Que foram comer e pegar roupas nos centros de triagem mesmo não tendo suas casas atingidas.
- Que esperaram as pessoas saírem das suas casas para roubarem o que restava.
- Que fizeram pessoas dormir em telhados e lajes com frio e fome para não abandonar suas casas e terem elas saqueadas.
- Que simplesmente fizeram de conta que nada acontecia, por estarem em áreas secas.
 
Da mesma forma, que essa mesma entidade superior abençoe:
 - Aqueles que atenderam ao chamado das rádios e se apresentaram no domingo no quartel dos bombeiros para ajudar de qualquer forma.
- Os bombeiros que tiveram paciência com a gente no quartel para nos instruir e nos orientar nas atividades que devíamos desenvolver.
- A turma das lanchas, os donos das lanchinhas de pescarias de fim de semana que rapidamente trouxeram seus barquinhos nas suas carretas e fizeram tanta diferença.
- À equipe da lancha, gente sensacional que parecia que nos conhecíamos de toda uma vida.
- Aos soldados do exército do Paraná e do Rio Grande do Sul.
- Aos bravos gaúchos, tantas vezes vitimas de nossas brincadeiras que trouxeram caminhões e caminhões de mantimentos.
- Aos cadetes da Academia da Polícia Militar que ainda em formação se portaram com veteranos.
- Aos Bombeiros e Policias locais que resgataram, cuidaram , orientaram e auxiliaram de todas as formas, muitas vezes com as suas próprias casas embaixo das águas, muitas vezes famintos por não terem tempo nem de almoçar, outras vezes preocupados por estarem longe de suas esposas, namoradas, longe de seus amores, de seus filhos, abdicando disso tudo para salvar outras vidas...
- Aos Médicos, enfermeiras e demais profissionais Voluntários.
- Aos bombeiros do Paraná que trabalharam ombro a ombro com os nossos.
- Aos Helicópteros da Aeronáutica e Exercito que fizeram os resgates nos locais de difícil acesso.
- Aos incansáveis do SAMU e das ambulâncias em geral, que não tiveram tempo nem pra respirar.
- Ao pessoal do Helicóptero da Polícia Militar de São Paulo, que mostrou que longo é o braço da solidariedade.
- Ao pessoal das rádios que manteve a população informada e manteve a esperança de quem estava isolado em casa.
- Aos estudantes que emprestaram seus físicos para carregar e descarregar caminhões nos centros de triagem.
- Às pessoas que cozinharam para milhares de estranhos.
- Ao empresário que não se identificou e entregou mais de mil marmitex no centro de triagem.
- A todos que doaram nem que seja uma peça de roupa.
- A todos que serviram nem que seja um copo de água a quem precisou.
- A todos que oraram por todos.
- Ao Brasil todo, que chorou nossos mortos e nossas perdas.
- Aos novos amigos que fiz no centro de triagem, na segunda-feira.
- A todos aqueles que me ligaram preocupados com a gente.
- A todos aqueles que ainda se preocupam por alguém.
- A todos aqueles que fizeram algo, mas eu não soube ou esqueci.

 
Há alguns anos, numa grande enchente na Argentina um anônimo escreveu isto:
 
 
COMEÇAR DE NOVO:
 Eu tinha medo da escuridão
Até que as noites se fizeram longas e sem luz
Eu não resistia ao frio facilmente
Até passar a noite molhado numa laje
Eu tinha medo dos mortos
Até ter que dormir num cemitério
Eu tinha rejeição por quem era da periferia
Até que me deram abrigo e alimento
Eu tinha aversão a Judeus
Até darem remédios aos meus filhos
Eu adorava exibir a minha nova jaqueta
Até dar ela a um garoto com hipotermia
Eu escolhia cuidadosamente a minha comida
Até que tive fome
Eu desconfiava da pele escura
Até que um braço forte me tirou da água
Eu achava que tinha visto muita coisa
Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas
Eu não sabia cozinhar
Até ter na minha frente uma panela com arroz e crianças com fome
Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras
Até ver todas cobertas pelas águas
Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome
Até a gente se tornar todos seres anônimos
Eu não ouvia rádio
Até ser ela que manteve a minha energia
Eu criticava a bagunça dos estudantes
Até que eles, às centenas, me estenderam suas mãos solidárias
Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos,
Agora nem tanto
Eu vivia numa comunidade com uma classe política
Mas agora espero que a correnteza tenha levado embora
Eu não tinha boa memória
Talvez por isso eu não lembre de todo mundo
Mas terei mesmo assim o que me resta de vida para agradecer a todos
Eu não te conhecia
Agora você é meu irmão
Tínhamos um rio
Agora somos parte dele
É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio
Graças a Deus
Vamos começar de novo.
                           (Anônimo)
   
É hora de recomeçar, e talvez seja hora de recomeçar não só materialmente. Talvez seja uma boa oportunidade de renascer, de se reinventar e de crescer como ser humano.
Pelo menos é a minha hora, acredito.
Que Deus abençoe a todos.
"
                                                                       Luis Fernando Gigena (Itajaí-SC)