23 de set. de 2004

Disfunção social

Um dos engodos mais responsáveis pela gravidade dos problemas sociais brasileiros tem o nome de "função social da empresa" ou, na variante que enche igualmente as falas de certo tipo de empresário, "função social do capital".Nas suas boas intenções, que não enchem o inferno mas enchem o Brasil de engodos, diz a Constituição no capítulo quase humorístico dos "Princípios Gerais da Atividade Econômica": "Art.170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II-propriedade privada; III-função social da propriedade", e assim vai.Ou antes, não vai. A função social da empresa ou do capital só pode começar pela remuneração posta e mantida no limite do econômica e financeiramente possível. É o primeiro passo para a "valorização do trabalho humano", único modo de, como resultado final, "assegurar a todos existência digna", também chamada de "justiça social".Os bancários estão fazendo, em 24 Estados, a maior greve dos últimos 15 anos. Nestes 15 anos, os lucros dos bancos fizeram o mesmo que já faziam por décadas: tornaram-se escandalosamente maiores ano a ano. Os lucros de bancos no Brasil não têm nada parecido no mundo todo. Por várias vezes, grandes bancos dos Estados Unidos, como o Citicorp e o Boston, têm feito a expressividade dos seus lucros finais com o lucro que realizam no Brasil. (Foi por esse caminho que Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, colheu o prêmio de presidir o Boston nos Estados Unidos, até receber o prêmio dado por Lula para vir cuidar, aqui, dos juros que garantem altos lucros aos bancos em atividade no Brasil).Os bancos brasileiros fazem os maiores lucros bancários do planeta, mas não têm competidor também em outro aspecto: pagam aqui os piores salários relativamente aos lucros. Não lhes basta a usura: praticam também a avareza.Afora os bancos e similares, a Petrobras lidera as 500 empresas mais lucrativas: seu lucro representa quase um terço dos lucros de todas as 500. É um caso eloqüente: o bom resultado repassa-se aos acionistas, enche a caixa de impostos do governo, mas quem o produz não recebe a compensação proporcional. Os funcionários da Petrobras estão na iminência de outra greve daquelas, para reposição e algum aumento real. Mais do que direito, têm razão de fazê-la. O seu trabalho é valiosíssimo para o Brasil. Porque não é o petróleo que está fazendo a quase auto-suficiência petrolífera brasileira, nem o lucro da Petrobras: é quem faz o petróleo vir das profundezas até transformar-se em riqueza nacional e em lucro empresarial.De repente, o leitor/espectador teve conhecimento de que o funcionalismo do Judiciário paulista está em greve há três meses. Com o acúmulo de 12 milhões de ações paralisadas, o presidente do Superior Tribunal de Justiça ameaçou intervenção em São Paulo. Mas ninguém permanece em greve por três meses se essa greve não provier de necessidade real e de forte sentimento de injustiça. O polêmico fundamento legal da intervenção, mesmo que dissolvido na teoria, não seria solução.Nos bancos, na Petrobras, no Judiciário paulista, nas demais áreas atingidas por greves ou sob risco de sê-lo, a solução é o honesto reconhecimento de perdas impostas aos salários e vencimentos nos últimos dez anos. As que não podem ser repostas de uma vez, por certo podem ser remediadas (o governador Alckmim não lançou nesta semana um pacotaço de redução de impostos, em evidente demonstração das boas condições do Tesouro paulista?).Nestes dez anos de plano real e doutrina econômica ditada pelo FMI, a parcela correspondente à remuneração do trabalho decresceu, na renda nacional, quase dez pontos percentuais, como disse ontem o competente Márcio Pochmann. Não se trata, portanto, de pretender a "função social da empresa ou do capital". No Brasil, coisas assim sempre foram dados como subservidas. E aqui o seriam, mesmo. Trata-se de algo modesto que o governo de um ex-operário pode estimular sem problema - isso, é claro, com a ressalva de que tudo depende de até onde foi ou vai sua conversão.

Janio de Freitas - Folha de São Paulo, 23/09/2004

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