30 de nov. de 2006

Mídia Procustiana

O escândalo Ustra e o papel da mídia
Argemiro Ferreira, na Tribuna da Imprensa

Ainda humilhada por sua própria derrota nas eleições de outubro, a grande mídia do país - do império Globo no Rio à "Folha de S.Paulo", passando pelo Estadão, "Veja", "Jornal do Brasil" e veículos regionais de menor penetração nacional - obstina-se na pândega "cruzada ética" para derrubar o presidente que o Brasil consagrou nas urnas. Com isso, ignora deliberadamente os temas relevantes.

Não foi tal mídia corporativa e sim uma família duramente golpeada pela prática da tortura no regime militar que tomou a iniciativa de fazer alguma coisa capaz de reviver a discussão desse tema - um processo para o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI em São Paulo, ser declarado torturador, ainda que não pague com pena de prisão pelos crimes que cometeu.

Por que essa mídia iria se deixar sensibilizar pelo assunto? Ela tem suas próprias razões para ficar só no velho denuncismo lacerdista como arma de pressão. Até porque a ditadura militar foi tão generosa com ela que cada um daqueles veículos - "O Globo", Rede Globo, "Veja", Estadão, "Folha", Bloch, etc. - pôde construir edifícios portentosos, nos quais instalou suas sedes novas.
A cumplicidade de cada um

As relações promíscuas das organizações de mídia com a ditadura mais sanguinária que o Brasil conheceu estão fartamente documentadas - como também a maneira submissa com que cada veículo acomodava-se ao papel de divulgador leviano de "press releases" mentirosos para maquiar a face cruel do regime militar, vendido ao mundo como "milagre" e democracia onde imperava a liberdade de imprensa.

A frase "Ninguém segura este País", depois lema da ditadura, foi lançada numa manchete de "O Globo". A Rede Globo festejava a ditadura regularmente nas patriotadas semanais de um certo Amaral Neto. O dedo-duro Cláudio Marques, que fez a campanha contra a TV Cultura de São Paulo, reclamando a prisão de Vladimir Herzog e outros jornalistas, publicava coluna na "Folha".

O Estadão, apesar de censurado algum tempo, negou-se a apoiar o recurso do semanário "Opinião" ao Supremo, contra a censura (alegou já ter a promessa do ditador de levantá-la em seus veículos). E para desencadear a repressão contra o Partido Comunista, a ditadura primeiro tomou a iniciativa de "plantar" na primeira página do "Jornal do Brasil" o texto sobre o espião Adauto Santos.

Faço essas observações para melhor ser entendido o fato de que a reabertura do debate sobre a tortura, com o processo contra Brilhante Ustra é subestimada na grande mídia enquanto websites como "Conversa Afiada", de Paulo Henrique Amorim, perceberam a relevância da questão. O Brasil, como destacou Amorim, é o único país do continente que não está revendo a Lei da Anistia.
Eterno segredo para os arquivos?

Como todo mundo sabe, nossa lei de anistia e as dos outros vieram em plena ditadura militar. A intenção embutida era garantir a impunidade dos torturadores. Na ocasião, organizações da sociedade civil estavam atentas, mas elas tentavam prioritariamente, por razões compreensíveis, restabelecer o estado de direito. No desdobramento tais leis foram revistas - e torturadores expostos e às vezes punidos. Mas não no Brasil.

Amorim trouxe há dias a palavra da professora Flávia Piovesan, especialista em direitos humanos e doutora em Direito Constitucional na PUC de São Paulo. Piovesan acredita que a Lei de Anistia de 1979 estabeleceu regime de concessões recíprocas que aviltou os direitos humanos: pelos parâmetros internacionais, que o Brasil respeita, em caso de tortura e violação grave o Estado assume o dever jurídico de "investigar, processar, punir e reparar essas violações".

Além daquela lei (a 6683/79), foi promulgada em 1995 a que reconheceu como mortos os desaparecidos políticos, estabelecendo indenização aos familiares. "É o que temos enquanto legado", diz a professora Piovesan. Outra lei, de 2005, trata do acesso aos documentos públicos, mantendo "quase em eterno segredo" os arquivos da ditadura.

Os três marcos jurídicos, para ela, estão aquém do que reclama a Constituição, que acolhe a ótica dos direitos humanos e realça sua importância. "Prevê, por exemplo, que os tratados é que mantêm a hierarquia constitucional, caracterizando a tortura como crime. É a primeira vez que isso ocorre na história", explicou a professora de Direito Constitucional
Exemplos para o Brasil seguir

As leis de anistia foram revistas no Chile (onde estão presos, entre outros, o ex-diretor da DINA, coronel Manuel Contreras), na Argentina (onde ex-ditadores são volta e meia recolhidos à prisão), no Peru (onde o ex-ditador Fujimori não ousa retornar porque corre o risco de pagar por seus crimes), e no Uruguai (onde agora ex-ditador Juan Maria Bordaberry passa por maus pedaços).

O sanguinário Augusto Pinochet - que, como outros, tem milhões de dólares escondidos em bancos espalhados pelo mundo - só escapou de castigo pior porque seus advogados alegam estar com a saúde muito abalada. E na Argentina a Corte Suprema deu outro exemplo, ao invalidar leis que impediam o julgamento dos torturadores do regime militar.

Enquanto isso, o Brasil fica apenas no esforço em favor da ação declaratória contra o coronel Ustra, sem prisão ou indenização para as vítimas. A esta altura, o tema deveria estar sendo discutido diariamente na grande mídia - mas esta, além de cúmplice da ditadura, está ocupada demais na "cruzada" ridícula contra Lula, que ela teima em castigar pela ousadia de desmentí-la e ganhar a eleição.

21 de nov. de 2006

Falácias da carga tributária

José Paulo Kupfer
21.11.2006-A economia se presta a manipulações dos mais variados quilates, menos pela dificuldade de entender seus fenômenos do que pelo fato de que muitos de seus conceitos não são intuitivos. A inflação, por exemplo, da qual os brasileiros de todos os níveis sociais são grandes especialistas, é um deles. A intuição diz que preço alto e inflação são sinônimos. Mas inflação não é preço alto. É alta (persistente) de preço.

Se, num mês, os preços sobem 100% e no mês seguinte ficam onde foram parar no mês anterior, a inflação mensal, no mês observado, é zero. Quando o Plano Real começou, em março de 1994, com a URV (unidade real de valor, lembram?), os preços foram estimulados a disparar. Quando veio o fim da URV e o início do real - resultado da conversão do dinheiro da época, o cruzeiro real (alguém lembra?), pela cotação do dólar de 30 de junho do mesmo ano -, os preços passaram a subir muito mais devagar, e a inflação despencou de 5.000% para 5%, de junho para julho daquele ano, num “passe de mágica”.

O mesmo problema ocorre com o conceito de carga tributária. Este também não é intuitivo, e o fato de não sê-lo faz a festa dos ignorantes ou, mais grave, dos de má-fé. Começa com a ocultação do fato de que, no Brasil, toda e qualquer contribuição compulsória a fundos públicos, deixa de considerar, como em outros países, se a contribuição pressupõe ou não retorno individual do dinheiro recolhido.

Você sabia que, no Brasil, diferentemente da maioria dos outros países, as contribuições para a previdência pública entram no saco de gatos da carga tributária? E que, se fosse para comparar corretamente, não considerando as contribuições previdenciárias, a carga tributária no Brasil seria de 30% do PIB – não de 38%, como se divulga? Ainda seria alta, mas não tão distante dos outros.

Carga tributária alta parece, mas nem sempre é sinônimo de imposto alto e muito menos de alta de impostos. Carga tributária não é alguma coisa em si mesma. Depende não só do volume de arrecadação de impostos, taxas, contribuições e tributos, mas também do Produto Interno Bruto (PIB).

Como se trata de uma relação entre o volume total em reais arrecadado e o PIB total também em reais, dependendo do comportamento de um e de outro, tudo pode acontecer com a carga tributária. Reduzida a sua expressão mais simples, a carga tributária é uma fração, definida, portanto, de acordo com o comportamento do numerador e do denominador.

Muito simples, mas também muito fácil também de distorcer e atender a interesses nem sempre claros. Até a maneira de apresentar a carga tributária não escapa da confusão. Quando se diz que a carga é de 38% do PIB, não são poucos os que se deixam levar pela idéia de que, de tudo o que a sociedade produz, quase metade vai para o ralo do governo.

Sem discordar de que muito do que é recolhido em impostos pelo governo vai pelo ralo – ou pior, acaba em bolsos indevidos –, a verdade não é nada disso. O que se deveria entender é que o total de impostos, taxas, contribuições e tributos arrecadados no ano soma cerca de R$ 750 bilhões, o equivalente a 38% do PIB, que anda em torno de R$ 2 trilhões anuais e representa o total, em termos líquidos, do que é produzido anualmente pelos brasileiros.

Dessas confusões conceituais todas decorre o singelo fato de que a carga tributária pode cair com aumentos de impostos ou pode aumentar quando se dá uma redução de impostos. Basta que, no primeiro caso, o avanço do PIB seja proporcionalmente maior do que o do volume de impostos. E que, no segundo caso, o PIB avance menos do que o corte de impostos. Só isso é suficiente para perceber o quanto de falácia envolve a discussão da carga tributária.

Entre nós, em razão das inigualáveis distorções do sistema tributário, com o perdão da heresia, aumentos de carga tributária nem sempre serão ruins e cortes nem sempre serão positivos. Duvida?

Costuma-se dizer que, no Brasil, para cada real arrecadado um outro real é sonegado. É possível que não seja exatamente essa a proporção, mas dificilmente alguém duvidará de que sonegar impostos é um dos esportes nacionais mais praticados. Vamos então supor que essa relação de um para um seja verdadeira e que, por algum milagre, tudo o que, pela lei, de fato deve ser recolhido em impostos, taxas, tributos e contribuições venha a pingar nos cofres públicos de um dia para o outro.

O que aconteceria? Obviamente, a carga tributária dobraria, alcançando monumentais 80% do PIB. Mas isso não significaria um grama de aumento de carga para os que já recolhem e, simplesmente, implodiria o déficit público, com todas as vantagens do equilíbrio fiscal.

Agora, imagine um corte drástico e linear nos impostos diretos e progressivos sobre a renda individual. Isso, num primeiro momento, aliviaria a vida de todos os que ganham o suficiente para não serem isentos de recolhimento do imposto de renda. Mas, é lógico, favoreceria proporcionalmente mais quem ganha mais. O resultado seria um colapso econômico, com estímulo à produção de bens supérfluos e a falência definitiva de serviços públicos tipo segurança, controle ambiental, pesquisas etc.

Esses poucos exemplos devem ser suficientes para que se entenda que as questões tributárias não são triviais. Não deveriam, portanto, serem tratadas do modo trivial como são. O problema menos grave é que, nessa área conflagrada da economia brasileira, não faltam interpretações rústicas e levianas. O mais grave é que quase todas, intencionalmente ou não, acabam escamoteando interesses conservadores e resistentes à redução consistente das desigualdades e iniqüidades sociais de que o Brasil é um vergonhoso campeão mundial.



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