27 de ago. de 2005

Por que Veríssimo matou a Velhinha de Taubaté

De Ubiratan Brasil em O Estado de S. Paulo, 27/08/2005

"A descrença na política que hoje domina a sociedade brasileira motivou o escritor e colunista do Estado Luis Fernando Verissimo a anunciar, em crônica publicada na quinta-feira, a morte da Velhinha de Taubaté, um dos seus mais conhecidos personagens. "Ela surgiu durante outro período de pouca crença do povo no governo, o regime militar, e agora não suportou o que está acontecendo", disse Verissimo, durante o último dia da 11.ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo.

A Velhinha de Taubaté tornou-se uma celebridade nacional por ser a última pessoa do Brasil que ainda acreditava no governo.

Verissimo conta que precisava revelar sua indignação com as denúncia de corrupção que cercam o governo Lula e, para isso, preferiu uma forma mais lúdica para mostrar que agora ninguém acredita em nada. Mas não nega que a personagem ainda poderá voltar. "Com os avanços da medicina atual, ela pode estar mantida por aparelhos ou até pode ser clonada", brincou.
O escritor pretendeu, com isso, demonstrar como essa é uma das maiores crises já vividas no País. "Nem o ministro Palocci merece mais confiança", comentou. "Não se trata apenas de uma ameaça à existência de um partido, o PT, mas comprova a existência de uma oposição, movida a ideologia, que pretende acabar totalmente com a esquerda no Brasil."
Verissimo concordou com Chico Buarque de Hollanda, que, durante sua passagem por Passo Fundo, comentou que o País está com a alma ferida. "Os acontecimentos são tão impressionantes que ainda não temos a distância necessária para avaliar seus efeitos", disse. "Nossa tarefa agora é descobrir o que está nos acontecendo. Na micro-história, trata-se da derrocada de um partido. Mas, na grande história, parece que vivemos uma tentativa de repetir algo semelhante ao que aconteceu a João Goulart, governante de esquerda que acabou derrubado da Presidência."

Velhinha de Taubaté (1915-2005)

Zero Hora, 25/08/2005
Morreu no último dia 19, aos 90 anos de idade, de causa ignorada, a paulista conhecida como "a Velhinha de Taubaté", que se tornou uma celebridade nacional há alguns anos por ser a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo. O fenômeno, que veio a público durante o governo Figueiredo, o último do ciclo dos generais, levou multidões a Taubaté e transformou a Velhinha numa das maiores atrações turísticas do Estado. Além de estandes de tiro ao alvo e de venda de estatuetas da Velhinha e de uma roda-gigante, ergueram-se tendas para vender caldo de cana e pamonha em volta da pequena casa de madeira onde a Velhinha morava sozinha com seu gato, e não era raro a própria Velhinha sair de casa e oferecer seus bolinhos de polvilho a curiosos que chegavam em ônibus de excursão para serem fotografados com ela e pedirem seu autógrafo. A Velhinha sempre acompanhou a política e acreditou em todos os governos desde o de Getúlio Vargas, inclusive em todos os colaboradores dos governos militares, "até", como costumavam dizer muitos na época, com espanto, "no Delfim Netto!". O presidente Sarney telefonava freqüentemente para Taubaté para saber se a Velhinha, pelo menos, ainda acreditava nele, e Collor foi visitá-la mais de uma vez para pedir que ela não o deixasse só.

As circunstâncias da morte da Velhinha de Taubaté ainda não estão esclarecidas. Sua sobrinha Suzette, que tem uma agência de acompanhantes de congressistas em Brasília, embora a Velhinha acreditasse que ela fazia trabalho social com religiosas, informou que a Velhinha já tivera um pequeno acidente vascular ao saber da compra de votos para a reeleição do Fernando Henrique Cardoso, em quem ela acreditava muito, mas ficara satisfeita com as explicações e se recuperara. Segundo Suzette, ela estava acompanhando as CPIs, comentara a sinceridade e o espírito público de todos os componentes das comissões, nenhum dos quais estava fazendo política, e de todos os depoentes, e acreditava que como todos estavam dizendo a verdade a crise acabaria logo, mas ultimamente começara a dar sinais de desânimo e, para grande surpresa da sobrinha, descrença. A Velhinha acreditara em Lula desde o começo e até rebatizara o seu gato, que agora se chamava Zé. Acreditava principalmente no Palocci. Ela morreu na frente da televisão, talvez com o choque de alguma notícia. Mas a polícia mandou os restos do chá que a Velhinha estava tomando com bolinhos de polvilho para exame de laboratório. Pode ter sido suicídio.

O ambiente no parque de diversões em torno da casa da Velhinha de Taubaté é de grande consternação.

10 de ago. de 2005

Era uma vez PT

O PT vêm, há muito tempo, deixando pelo caminho gente como César Benjamin. E não se enganem, não, Tarso = José Genoíno = Delúbio Soares = Waldomiro Diniz = José Dirceu > e todos filhos de Lula!

Folha de São Paulo - 07/08/2005
INTELECTUAIS QUE PARTICIPARAM DA CONSTRUÇÃO DO PARTIDO AVALIAM SUA TRAJETÓRIA HISTÓRICA; PARA CÉSAR BENJAMIN, O GRUPO DO PRESIDENTE MONTOU UM ESQUEMA CENTRALIZADOR, "BASEADO NO CRIME", AINDA NA DÉCADA DE 90; PAUL SINGER DEFENDE QUE A SIGLA É DEMOCRÁTICA E DEVE SER CAPAZ DE REAVIVAR O DEBATE INTERNO E CORRIGIR SEUS RUMOS

O MITO DO PARAÍSO PERDIDO

CÉSAR BENJAMIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Até mesmo a fraude, para que seja eficaz, tem de trabalhar com a esperança, perversamente estimulada. (...) A esperança fraudulenta é uma das maiores malfeitoras da humanidade."
Ernst Bloch, em "O Princípio Esperança".
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Lula sempre compartilhou da intimidade do grupo e foi o principal beneficiário de suas ações
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Com o descalabro do governo Lula, multiplicam-se as pessoas que relembram, saudosas, o velho PT e pregam um retorno ao partido que supostamente existia antes de chegar ao poder. Mais uma vez reaparece a idéia, tão recorrente, de que houve um estado original, mais ou menos puro, que deve ser recuperado. Em outros contextos, quem ainda não ouviu histórias sobre a existência de um homem original, uma sociedade original, uma língua original? Procura-se agora um partido original. São conceitos que pertencem ao universo do pensamento mítico. Na vida real, não há começos absolutos, descontaminados de decadências posteriores. Não há pontos de partida e de chegada. Há processos. Os trabalhos etnológicos de Bronislaw Malinowski [antropólogo inglês nascido na Polônia, 1884-1942] foram decisivos para estabelecer isso.
O caso do PT, por ser tão recente, é ainda mais claro. Os malfeitos que têm vindo à luz não começaram agora nem decorrem de um equívoco individual. Representam apenas a transferência, para a esfera do governo federal, de práticas iniciadas, com certeza, nos primeiros anos da década de 1990, talvez antes, e nunca descontinuadas. As impressões digitais do mesmo grupo aparecem na gestão do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), na organização das finanças da campanha presidencial de 1994, na gestão de algumas prefeituras, como a de Santo André, na busca de controle de fundos de pensão, para citar apenas as situações mais notórias.
Sobre tudo isso, há anos, correm histórias escabrosas, pois um esquema tão amplo e longevo nunca permanece completamente invisível. Ao aceitar conviver com isso, ao mesmo tempo mantendo a bandeira da ética para consumo externo, o PT ficou exposto à ação corrosiva da hipocrisia, que o destruiu.

Duendes
Lula sempre compartilhou da intimidade do grupo e foi o principal beneficiário de suas ações. Garante, porém, que nada sabia. Respeito quem acredita nisso, assim como respeito quem acredita em duendes. Seja como for, pelo número de conexões já descobertas e de instituições envolvidas, estatais e privadas, parece claro que estava em curso, em seu governo, a montagem de uma rede de corrupção poucas vezes igualada.
Uma rede sistêmica, planejada, coletivamente organizada. Dos Correios à Petrobras, das empreiteiras com créditos a receber às verbas de publicidade, do Banco do Brasil aos fundos de pensão, nada estava, em princípio, fora de seu raio de ação. Um esquema desse tipo sempre precisa de forte apoio em altos escalões de governo, que ordenam os pagamentos e fazem as nomeações. Sílvio Pereira, Delúbio Soares, Waldomiro Diniz e outros "operadores" nunca tiveram cargos que lhes permitissem agir sozinhos de forma eficaz.
Novos passos estavam por vir. Depois da reforma sindical, já anunciada, o grupo poderia dar o grande salto, com a transformação das centrais sindicais em entidades muito mais centralizadoras, financeiramente poderosas, aptas a gerenciar bancos, planos de saúde privados e fundos de pensão. O grupo deixaria para trás a fase de "acumulação primitiva", baseada no crime, e se estabeleceria dentro da lei, por meio, principalmente, do sindicalismo de negócios. O trânsito em direção a uma atividade empresarial regular, muito rentável, é o sonho de toda máfia. O predomínio desse projeto ajuda a explicar por que foi abandonada tão fácil e completamente qualquer veleidade de fazer um governo republicano e transformador. Os objetivos, há muito tempo, eram outros.
Estamos diante de um fenômeno novo em nossa história. Ele tem várias dimensões. Uma delas é a introdução, na esquerda brasileira, em larga escala, daquilo que Marx chamava, em outro contexto, o "poder dissolvente do dinheiro". As sociedades antigas, baseadas na tradição, na hierarquia e na religião, desconfiavam de banqueiros e de grandes comerciantes e não raro os reprimiam, porque percebiam que o fortalecimento da esfera do dinheiro desagregaria tudo o mais. Foi o que finalmente aconteceu no mundo moderno, para o bem e para o mal, com a completa mercantilização da vida social. Processo semelhante ocorreu na esquerda brasileira nos 15 últimos anos.
A hegemonia obtida pela Articulação, no PT e na CUT, não pode ser desassociada do uso sistemático dessa nova e poderosa arma, até então desconhecida entre nós, a arma do dinheiro. Ela acabou destruindo sonhos coletivos. Tornou desnecessária a batalha de idéias. Transformou a militância em um estorvo, diante da docilidade dos cabos eleitorais remunerados. E terminou por engolir os seus próprios executores. Seus projetos de origem, que continham alguma política, também foram dissolvidos pelo mesmo poder.
A rede de cumplicidades que o grupo reuniu em torno de si, com variados graus de engajamento e responsabilidade, contamina tão profundamente o PT que uma reforma séria do partido tornou-se inviável. Cumpriu-se minha profecia, feita da tribuna, cara a cara com os 600 delegados no encontro nacional de 1995, o último do qual participei: ao aceitarmos financiamentos de bancos e empreiteiras, feitos à revelia das instâncias partidárias, estávamos diante do ovo da serpente que iria nos engolir.
Dessa responsabilidade histórica, muitíssimo grave, Lula não escapará. Sua liderança corroeu, por dentro, parte expressiva da esquerda. Não deixará nenhum legado político, teórico ou moral.
Lula optou pela esquizofrenia: corta todas as verbas dos ministérios, para fazer o alucinado superávit exigido pelo capital financeiro, e anuncia que nenhum governo realiza tanto quanto o seu; demite Olívio Dutra para nomear um protegido de Severino Cavalcanti e diz horas depois que a elite jamais conseguirá pressioná-lo; seu filho recebe R$ 5 milhões de uma concessionária de serviços públicos, ele nomeia um advogado da mesma empresa desembargador do tribunal onde ela enfrenta suas maiores causas e isso não o impede de anunciar-se como o mais ético dos brasileiros; depois de dois anos e meio na chefia do governo, continua a atribuir as dificuldades a uma herança maldita que ele só fez agravar. Abdicou de uma coerência mínima entre o que faz e o que diz.
Aposta na desinformação do povo e numa identificação pré-política, irracional, com ele, porque um dia, há muito tempo, foi pobre. Está se tornando um "espetáculo excessivo", para usar a expressão de Roland Barthes, referindo-se às lutas de catch. Ao contrário do que normalmente se diz, seu governo é mais conservador na política que na economia. Lula foi a esperança fraudulenta a que Ernst Bloch se referia.

Perto do fim
Há mais de dez anos o PT está morrendo, mas esse processo não podia completar-se antes de o "Lula-lá" se realizar. A agonia se prolongou e o partido apodreceu. Tornou-se uma experiência efêmera, e fundamentalmente equivocada, na vida brasileira. Pretendendo ser o novo absoluto, rompeu a memória das lutas populares. Recusou a teoria. Fechou os olhos para a diversidade do Brasil. Afrouxou os princípios, exacerbou a arrogância. Aceitou a disseminação de um enorme conjunto de antivalores, formando a mais desqualificada geração de quadros e líderes de toda a nossa história.
Perdoem-me os inúmeros petistas honestos, mas não é hora de meias palavras. A imensa maioria deles foi cúmplice da desventura, pelo menos por omissão.
Felizmente, o ciclo do PT está prestes a se encerrar. O partido continuará a existir como mais uma legenda pragmática, destituída de utopia, na qual se disputam eleições e se constroem carreiras. Só isso. Por mais dolorosa que seja a crise, ela permite antever o fim do pesadelo de uma esquerda sem fibra, honra e caráter, incapaz de apresentar à sociedade brasileira um projeto histórico transformador.
Muitos temem que a direita se fortaleça. Estão certos, mas só no curto prazo. Paradoxalmente, a crise do governo Lula poderá vir a ser a crise do neoliberalismo no Brasil, propiciando, finalmente, o aparecimento de uma proposta real de mudanças, cujo contorno continua obscuro.
Não creio, porém, que a sociedade aceite passivamente o retorno dos velhos esquemas, já conhecidos, que afundaram o país no atoleiro. Ela demandará um projeto novo. Nossa grandeza será medida pela capacidade que tivermos para construí-lo. De esquerda, de preferência. Com a esquerda, se possível. Sem a esquerda, se necessário, pois a crise brasileira é grave demais. Há muito sofrimento humano em jogo. No que me diz respeito, o compromisso com o povo e a nação está acima das seitas.
Nossa consigna deve ser, agora, o "motto" do último movimento do opus 35 de Beethoven: "Muss es sein? Es muss sein!" -Deve ser? Deve ser!


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César Benjamin foi fundador do partido e dirigente até 1995. É autor de "A Opção Brasileira" e "Bom Combate" (ambos pela Contraponto) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.