24 de mar. de 2006

De cães e gatos


Ulisses estava prestas a desembarcar em sua ilha. Já via a fumaça (fumus boni iuris) dos fogões em terra. Relaxou e cochilou, e vice-versa. Mas seus homens, enquanto dormia, abriram o saco onde julgavam estar os tesouros do chefe. Nela estavam os ventos adversos que o deus Éolo lhe entregara quando da passagem pela ilha flutuante Eólia. Soltos, os ventos afastaram Ulisses da ilha, devolvendo-o às vicissitudes porque já passara. Nenhum marinheiro sobreviveu, e só Ulisses retornou ao lar.
Depois de tanto tempo, somente o cão Argos o reconhece, abana o rabo e morre.
Mutatis mutandis, o PT viu a fumaça do poder, acendeu as churrasqueiras do Planalto ao Torto e à Direita, e assou os movimentos sociais em fogo brando. Enquanto festejava, os Paloccis, os Delúbios e os Genuínos, escoltados por uma malta que ia de Tarso Genro aos Tiãos Viannas, abriram os sacos das doideiras autistas. Era a Utopia do Possível ou o Pragmatismo da Sete Pragas. Enquanto isso, o comandante dormia.
Quando eu chego em casa, tenho quem me abane o rabo. Já quem preferiu afastar os melhores amigos do homem, e caçarem com gatos, já estão com o rabo entre as pernas, procurando um abrigo para se enconderem.

Carta aberta ao senador Eduardo Suplicy

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO

Meu caro Eduardo Suplicy: Temos uma longa amizade e um longo companheirismo político. Não me esqueço -e aproveito para agradecer publicamente- do corajoso apoio que você deu a minha candidatura a presidente do PT, numa hora em que isso iria lhe custar -como está custando agora- dificuldades com a oligarquia dirigente do partido.


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A desobediência civil é gesto extremo para despertar uma sociedade anestesiada, incapaz de ouvir os clamores do povo
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Por isso mesmo, sei que você receberá estas palavras como uma contribuição sincera de um velho companheiro.
Levanto duas objeções à carta aberta que você enviou ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), publicada neste mesmo espaço na última sexta-feira, a propósito da destruição de mudas de espécies florestais em um centro de pesquisas da Aracruz, no Rio Grande do Sul.
A primeira é a invocação das ações de Gandhi e Martin Luther King Jr. como exemplos de ações não violentas que o MST deveria seguir. No entanto, a ação das mulheres do MST, na Aracruz, se enquadra perfeitamente na tradição das lutas desses dois mártires dos oprimidos. O que elas praticaram foi um ato de desobediência civil -uma ação que desafia a lei, a medida ou a omissão injustas sem incitar agressão a pessoas.
Em seus respectivos contextos, os atos de desobediência civil comandados por esses dois grandes líderes foram considerados inaceitáveis e escandalizaram as pessoas sérias, honestas, cumpridoras das leis.
Ora, o objetivo das ações de desobediência civil é precisamente este: desassossegar consciências tranqüilas, como um meio de fazê-las ver a responsabilidade que têm na manutenção de situações inaceitáveis, porém admitidas como normais e corretas. Trata-se de um gesto extremo para despertar sociedades anestesiadas, incapazes de ouvir os clamores do povo.
Vejamos, por exemplo, em que deu a marcha pacífica que os sem-terra realizaram em Brasília, no ano passado, a fim de pedir, de forma respeitosa e ordeira, a reforma agrária. Que resposta obtiveram do governo? Que solidariedade receberam da sociedade? Que noticiário deram os jornais?
A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas. Repare bem no próprio texto transcrito na sua carta aberta: Luther King diz que o protesto "não pode degenerar em violência física". Não há menção a causar prejuízos ao capital. Por acaso, o boicote do sal e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionista no Sul dos Estados Unidos e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo deixaram de causar enormes prejuízos materiais aos capitalistas?
Violência física não houve no ato das mulheres. Houve a destruição de mudas destinadas a implantar a monocultura florestal no Rio Grande do Sul.
Sem falar nos danos que esse tipo de agricultura causa ao meio ambiente, é preciso que todos saibam que se trata de uma forma de agricultura extremamente nociva à pequena agricultura. Poucos sabiam disso. Agora, com a cobertura que a imprensa deu ao episódio, todos ficaram sabendo. Nisso consiste a desobediência civil. É selvagem porque a realidade é selvagem.
Minha segunda objeção a sua carta aberta se refere à falta de uma outra carta aberta: aquela que teria de ser enviada à Aracruz, reclamando da destruição da aldeia indígena dos guaranis no Estado do Espírito Santo e falando sobre a ameaça que representa atualmente a monocultura da celulose para os pequenos agricultores.
Essa forma de violência, sim, se volta contra a existência física das pessoas, na medida em que destrói o ambiente em que essas pequenas unidades familiares podem sobreviver. No entanto, isso se faz daquela forma disfarçada, asséptica, que o capitalismo usa para dar uma aparência de racionalidade à destruição dos grupos humanos que perturbam o "progresso" -o outro nome da sua fome insaciável de lucro e de acumulação de capital.
Prezado Eduardo, o MST vive uma hora dificílima, porque o governo depositário de suas esperanças não tem coragem de realizar a reforma agrária nem de enfrentar as forças políticas que tentam criminalizá-lo, como estamos vendo com a CPI da Terra.
Sei o quanto você já fez pelo movimento e sei também o apreço e o respeito que os sem-terra têm por você. Seu artigo, contudo, embora obviamente contra sua vontade, fornece munição aos adversários. Peço que o reconsidere e que venha somar conosco na defesa incondicional dos legítimos interesses dos trabalhadores rurais sem terra.
Por que não enviar uma carta aberta ao governo, a fim de exigir a publicação dos índices atualizados de produtividade da terra? Isso permitiria acelerar a reforma. Caso a reforma fosse acelerada -você o sabe tão bem quanto eu-, as pacíficas e extraordinárias mulheres do MST não seriam compelidas -como estão sendo- a realizar gestos extremos a fim de chamar a atenção da sociedade para o drama que vivem há muito tempo.



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Plínio de Arruda Sampaio, 75, advogado, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do "Correio da Cidadania". Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).

Carta ao MST

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Meu caro João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra):
Com o sentimento de quem tem sido solidário ao MST desde a sua fundação, como amigo da causa da reforma agrária e da realização de maior justiça em nosso país, gostaria de externar minha sincera opinião sobre os últimos acontecimentos em Porto Alegre (RS). Acredito que o MST consegue obter muito mais apoio do povo brasileiro para sua causa sempre que utiliza meios pacíficos, não-violentos, e de respeito aos seres humanos e ao que tiver sido construído honestamente por outros.


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Acredito que o MST obtém muito mais apoio do povo brasileiro para sua causa sempre que utiliza meios pacíficos, não-violentos
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Falo isso por causa do episódio ocorrido na semana passada, quando as companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina destruíram as mudas de eucaliptos e as instalações do laboratório da Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul.
Bem sei que elas desejavam protestar contra um modelo de agronegócio que o MST tem criticado, uma vez que florestas homogêneas de eucaliptos para a produção de celulose podem prejudicar a biodiversidade. Também sei que essa atitude foi uma reação à destruição da aldeia indígena dos guaranis por tratores da Aracruz no Espírito Santo. Ou seja, agiram em solidariedade aos índios guaranis.
Reitero, entretanto, a recomendação que fiz quando, convidado pelo MST, em 10 de julho de 1999, administrei uma aula na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) para mais de mil jovens -de quase todos os Estados brasileiros- pertencentes ao movimento.
Dei de presente àqueles jovens a tradução que eu mesmo fiz de uma das mais belas orações da história da humanidade: "Eu tenho um sonho", de Martin Luther King Jr., feita em 28 de agosto de 1963, em Washington, no dia em que foram comemorados os cem anos da abolição da escravidão nos EUA.
Naquela época, Luther King Jr. se preocupava com a necessidade premente da aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei dos Direitos Iguais de Votação. Em muitos Estados do Sul dos EUA, não era permitido aos negros freqüentar os mesmos hotéis, restaurantes, escolas e banheiros ou usar os mesmos ônibus e calçadas que os brancos. Os negros nem sequer eram considerados cidadãos americanos, pois, em diversos Estados, não tinham o direito de votar, o que gerou movimentos de revolta, quebra-quebras e incêndios em inúmeras cidades.
Foi então que Martin Luther King Jr. conclamou seus compatriotas a seguirem os exemplos históricos de Mahatma Gandhi e outros, que realizaram movimentos assertivos não-violentos para alcançar objetivos importantes e difíceis, como o da independência da Índia, em 1947.
Naquele dia, perante mais de 200 mil pessoas, disse Martin Luther King Jr.:
"Esse não é o tempo de nos darmos ao luxo de nos acalmarmos ou de tomar a droga tranqüilizadora do gradualismo. Agora é a hora de tornar reais as promessas da democracia (...) agora é o momento de fazer da justiça uma realidade para todas as crianças de Deus. Seria fatal para a nação não perceber a urgência do momento".
E, adiante, disse: "Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa luta no plano alto da dignidade e da disciplina. Nós não podemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física. Todas as vezes -e a cada vez-, precisamos alcançar as alturas majestosas de confrontar a força física com a força da alma".
Pouco tempo depois desse discurso, o Congresso norte-americano aprovou -e o presidente Lyndon Johnson sancionou- as Leis dos Direitos Civis e dos Direitos Iguais de Votação.
O MST tem sido muitas vezes criativo. E, assim, granjeou forte apoio do povo para a justa causa da reforma agrária -quando, por exemplo, organizou as marchas para Brasília em memória das vítimas do massacre de Eldorado do Carajás ou em memória da irmã Dorothy Stang, morta no ano passado pelos interesses do latifúndio.
Para mostrar sua solidariedade aos índios guaranis, tenho a convicção de que as mulheres da Via Campesina poderiam -e podem ainda- escolher uma forma pacífica, criativa, utilizando muito mais a força da alma do que a força física.
De outra forma, daremos razão aos que, em pleno século 21, preferem utilizar os instrumentos bélicos em vez dos instrumentos civilizatórios do bom senso e da inteligência.



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Eduardo Matarazzo Suplicy, 64, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), professor da Eaesp-FGV, é senador da República pelo PT-SP. É autor do livro "Renda de Cidadania - A Saída é pela Porta" (Cortez Editora e Fundação Perseu Abramo).

22 de mar. de 2006

Opus! Doeu, Alckmin?!


ELIO GASPARI - Folha de São Paulo, 22/03/2006.

Depois da farsa petista, a farsa tucana
Quem acreditou no monopólio da ética pela nação petista fez papel de bobo e, com razão, zangou-se. Só falta agora que essas mesmas pessoas resolvam acreditar no monopólio da ética pelo tucanato. Em matéria de parolagem, vem aí uma sucessão presidencial onde se encontrarão Geraldo Alckmin e seu "banho de ética" e Lula com sua megalomania: "Está para nascer alguém que venha discutir ética comigo".
Tome-se um exemplo destes dias, quando se discute a palavra do caseiro Francenildo Costa, aquele que chama Antonio Palocci de mentiroso. Que opinião uma pessoa formará desse cidadão depois de ler o seguinte diálogo:
- No sábado, eu tô ai. (...)
- Taí, se esse dinheiro sair, você pega uma boa bolada. (...)
- Quanto o senhor tem? Seis, é?
- (...) Tenho não. Dá uns dois.
Pode formar a opinião que quiser, porque Francenildo não tem nada a ver com essa conversa. Ela reproduz um trecho da gravação de uma cabala do deputado federal Domiciano Cabral, do PSDB-PB, com o empresário Julião Medeiros, seu sogro. (A Paraíba é governada pelo tucano Cássio Cunha Lima.)
O diálogo, gravado pela Polícia Federal com autorização judicial e divulgado no sábado pelo repórter Felipe Patury, não mereceu um só comentário da casa de banhos do PSDB. Na tarde de ontem, passados quatro dias da revelação, a página que o partido mantém na internet tinha 32 notícias. Vinte e seis referiam-se às roubalheiras-companheiras. Nenhuma mencionava Domiciano Cabral. Nem para que ele se defendesse.
É a lógica do barão de Araruna (Osmar Prado na novela das seis), não se discute maracutaia da casa-grande na frente dos criados.
O PSDB repete a empulhação petista. Proclama-se monopolista da ética e manda ver. Quer colocar seu candidato no Planalto julgando-se beneficiado por um habeas caixa concedido pelo Padre Eterno. Fez isso no ano passado, quando impôs à choldra a permanência do senador Eduardo Azeredo na presidência do partido. Ele fora o cabeça de uma coligação partidária que recebeu R$ 9 milhões das arcas valérias. Pode-se admitir o argumento segundo o qual esse ervanário referia-se à campanha de 1998. Pode-se até admitir que, com a candidatura de Alckmin, a conta deveria começar no zero. Pois bem: o doutor Domiciano Cabral está na jurisdição básica de Alckmin.
O PSDB quer derrubar Palocci (a quem dedicou interessada idolatria, ao tempo em que até o caseiro Nildo sabia de seus feitos valorosos). É uma idéia. Querem encurralar o governo, confrontando-o com a prepotência que cultiva. É uma ótima idéia. Desde que não toquem trombetas no proscênio para fazer acordos nas coxias. Noves fora, a proteção dada a Palocci pelos grão-tucanos, o deputado João Paulo Cunha foi presenteado no Conselho de Ética com uma indulgência do deputado Bosco Costa (PSDB-SE). Nenhum tucano mostrou-se surpreso nem o partido noticiou o feito.
Uma coisa é lutar contra a corrupção, bem outra é manipular essa luta. Essa foi a principal bandalheira petista. O surto moralista dos tucanos é falso como os depoimentos dos comissários petistas nas CPIs. Suas denúncias devem ser estimuladas, pois é preferível um PSDB denunciando Palocci a seus senadores defendendo-o. O que não se deve é acreditar na animação desse baile de solteironas. Muito menos em "banho de ética". A um banho desses, é preferível lamber sabão.

20 de mar. de 2006

O Biombo


Informação é poder. Portanto, cuidado com quem a detém!
O pai da História, Heródoto, já da conta da importância esteganografia. Histio informava Aristágoras de Mileto enviando mensagens através de um escravo. Raspava a cabeça, escrevia onde o portador não podia ler, deixava o cabelo crescer, e o enviava. Lida a mensagem, morria o portador. Era a segurança da informação. Mas, cuidado, não se pode enganar todos todo o tempo. Percebendo que os mensageiros anteriores não voltavam, determinado escravo lhe fez lerem o conteúdo da mensagem. Aquela não chegou, pois, como as outras, terminava com a determinação de que o portador fosse morto.
Quando um jornal preserva o "sigilo da fonte", pode estar ocorrendo uma de duas:
a) ou o jornal está protegendo um informante diante de alguém mais poderoso;
b) ou o jornal está protegendo seus interesses com a desculpa do sigilo da fonte.
Por exemplo, ao preservar o sigilo de quem passou a informação de que o exército negociou com os traficantes para recuperar as armas roubadas, o jornal o estará protegendo de dois braços poderosos: a) do exército e/ou, b) do tráfico.
Agora, quando um Ministro, Secretário de Estado, Presidente, Prefeito, Governador for o informante, o sigilo da fonte é ou a defesa do interesse do jornal ou a defesa de interesses dos informantes. Isto é, interesses escuros. Neste caso, cabe a pergunta: "a quem beneficia"? Quando o informante é um agente público, das esferas mais altas do poder, o anonimato não se justifica. Tudo indica que o jornalista(jornal) está tentando proteger interesses próprios ou da fonte. Com isso propicia uma relação de interdependência e de troca de favores com a fonte. Não está em jogo somente a credibilidade da informação mas também a honestidade de propósito quanto aos eventuais reflexos do fato divulgado. Por exemplo, o Ministro/Secretário denuncia um colega ou o chefe do Executivo (Federal/Estadual/Municipal), e recebe em troca espaço na mídia para se promover politicamente. Embora seja da natureza da política, não é da razão de ser da informação.
Quando a grande mídia faz uma acusação usando o biombo do sigilo da fonte poderosa, pode ter certeza, está decepando a cabeça da verdade.

16 de mar. de 2006

Papelão da Mídia

MOBILIZAÇÃO POPULAR

As lágrimas da Aracruz

Ação da Polícia Federal apoiada pela Aracruz Celulose S/A destruiu duas aldeias e expulsou 50 pessoas dos povos Tupiniquim e Guarani de sua terra tradicional, no município de Aracruz-ES. Não se viu na imprensa nenhuma mãe indígena com seus filhos chorando...

Cristiano Navarro, da Agência Carta Maior

"Jamais esperava este tipo de violência", afirmou de um hotel de luxo em São Paulo, o presidente da empresa Aracruz Celulose, Carlos Aguiar, ao jornal Zero Hora da última sexta-feira (10).

No dia 20 de janeiro deste ano, a empresa Aracruz Celulose S/A mobilizou helicópteros, bombas, armas e 120 agentes da Polícia Federal do Comando de Operações Táticas (COT), vindos de Brasília, para destruir duas aldeias e expulsar 50 pessoas dos povos Tupiniquim e Guarani de sua terra tradicional, no município de Aracruz-ES.

Sem sequer receber uma ordem de despejo, os Tupiniquim e Guarani foram surpreendidos com o violento ataque. A ação, que resultou na prisão arbitrária de duas lideranças e deixou outras 12 pessoas feridas, teve todo o apoio logístico da empresa Aracruz Celulose S/A. Os 120 agentes da Polícia Federal receberam hospedagem e utilizaram o heliporto e os telefones da multinacional.

Durante a ação ilegal da Polícia Federal – condenada inclusive pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados –, tratores da multinacional destruíram totalmente duas aldeias Tupiniquim e Guarani. Todas as casas foram derrubadas e muitos índios não puderam retirar seus pertences de dentro delas.

No noticiário das grandes empresas de mídia, não se viu nenhuma mãe Tupiniquim ou Guarani com seus filhos chorando, nenhum ministro do governo condenando a ação ou mesmo o dono da empresa lamentando a violência.

Mas se por aqui as grandes empresas de mídia não repercutiram o crime cometido pelo aparelho repressor do Estado e pela Aracruz Celulose S/A, a família real da Suécia resolveu vender suas ações da multinacional devido às denúncias e fortes pressões contra a violação de direitos humanos cometidos e o desrespeito ao meio ambiente no Brasil.

Mesmo com as denúncias, a empresa ainda conta com vultusos recursos do BNDES, banco estatal. Recentemente foi noticiado que a Aracruz Celulose S/A será beneficiada com mais de R$ 297 milhões de recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). O empréstimo, segundo os movimentos sociais, deverá resultar na perda de pelo menos 88 mil postos de trabalho. Essa informação também não foi repassada à opinião pública nacional.

O povo vai à frente
Avançando sobre valores que representam pilares do capitalismo, como a tecnologia e a propriedade privada, claro que a ação das mulheres camponesas contra o laboratório da Empresa Aracruz Celulose S/A seria rechaçada por diversos setores. Mas é assim que avançam as lutas populares no Brasil. O povo organizado vai à frente tomando porrada de todos os lados e respondendo às urgências do dia-a-dia, enquanto busca aqui, ali e acolá os seus aliados.

Imagine se os movimentos sociais pautassem suas agendas e ações a partir das possíveis repercussões nas grandes empresas de mídia? Demarcação de terra indígena e reforma agrária, sem retomada e ocupação de terras, não existem.



é jornalista do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

6 de mar. de 2006

Aos Goebbels da VEJA


EMBAJADA DE LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA

EN LA REPÚBLICA FEDERATIVA DEL BRASIL

Brasília, 06 de fevereiro de 2006.

Sr. Roberto Civita
Editor

Revista VEJA

Senhor Civita, permita-me iniciar esta carta com o reconhecimento à tenacidade com que seus colunistas se dedicam à tarefa de impor a verdade da mídia. Nisto, tenho certeza, seriam a inveja do mesmo Joseph Goebbels. Não obstante, permita-me também lhe aconselhar que diminua o esforço para o bem da saúde mental de seus escreventes, uma vez que o mundo que lê VEJA está convencido de sua ária pureza jornalística, de que vocês, dentro do mais tradicional esquema de jornalismo conservador -tanto na técnica como no conteúdo- se sentem donos da verdade. Já sabemos, senhor Civita, que dentro de VEJA transita o dogma e a fortaleza própria do invulnerável, que qualquer coisa que esteja fora de sua linha ou do seu âmbito ideológico é errada, que vocês estão convencidos -e são capazes de morrer por isso- de que nada diferente do que escrevem pode existir fora de suas linhas.

É óbvio, senhor Civita, que VEJA é mais que uma simples revista. VEJA é um templo sem sacerdotes, ali só há deuses, pois somente os deuses geram verdades inquestionáveis. Esta condição divina é notória, por exemplo, nas fotografias que acompanham as colunas. Veja o senhor, repare bem, na postura esnobe de Tales Alvarenga, ou no olhar onipotente de Diogo Mainardi. ¡Coitado de quem entrar no âmbito de sua ira! ¡Será condenado para sempre ao inferno!

¿Ou não é verdade que somente eles conhecem aquilo que adoece o mundo e são capazes de condená-lo?

É, senhor Civita, também sabemos. Sabemos que a VEJA condena sem julgar, porque a verdade da mídia não requer trâmites desta índole, nem está aí para isso, ¿não é? Digo, para julgar, porque o jornalismo -segundo ensina a filosofia da comunicação e todos os códigos da ética- não está projetado para ser juiz, senão para se dedicar à tarefa de mostrar os diversos ângulos da realidade que é apresentada ao mundo e deixar que sejam outros os que julguem.

Mesmo assim, devo confessar-lhe que também não acredito muito nisto e que estou mais próximo de admirar um jornalismo menos frio y objetivo, a um jornalismo que não transforme os fatos humanos em simples coisas de tipografia, tinta e papel. Devo confessar-lhe que, igualmente a no meu país, prefiro um jornalismo mais combativo, distante dessa ficção que denominam "objetividade jornalística" e próximo àquela pro atividade ética que já indicava John Dos Passos na sua novela Paralelo 42 -que acredito que o senhor tenha lido alguma vez-: "o anelo de todo jornalista era desentranhar o significado exato de toda mudança operada na realidade".

Vê, senhor Civita, Dos Passos escreve "o significado exato", nós nos perguntamos de imediato ¿de que se trata isso? E ficaríamos órfãos de entendimento a respeito se não tivéssemos a capacidade de relacioná-lo com essa maravilhosa palavra que é "desentranhar", que significa, dentre outras cosas, averiguar, penetrar o mais difícil e escondido de uma matéria.

Cobra uma melhor e mais digna dimensão profissional e ética com isto a tarefa jornalística, ¿não é assim, senhor Civita? Veja, o jornalista é uma pessoa que se submerge na realidade dos fatos, esquadrinha as suas entranhas, examina os detalhes, se desliza com sigilo entre as aristas, observa atento seus diversos ângulos e os traz todos até a superfície, para dar a oportunidade de que qualquer um que passe perto de suas bordas possa senti-las e armá-las como uma realidade mais ou menos objetiva, mas principalmente humana.

E eis aqui um dos significados da palavra "desentranhar" de que mais gosto, aquele que a apresenta como um ato voluntário de desapropriação. Nada mais humano do que desapropriar-se de tudo que se tem e se conhece para entregar ao outro com a vontade ética, social e humana que possa ajudá-lo a compreender.

Lástima, senhor Civita, mas não vejo isto no olhar dos seus colunistas, pelo menos nesse que mostram as fotografias que acompanham suas colunas.

O que é bem certo é que VEJA também não crê nem pratica o contra-sentido da objetividade jornalística. O terrível é que também não responde a isto com sentido ético, porque para VEJA o mundo adoece de um mal universal: tudo o que é sensivelmente humano fede.

É por isso que entendemos esse afã por listar nomes que, repito, desde sua ária pureza jornalística, são indesejáveis, imprescindíveis, tolos, tiranos e vagabundos que devem ser exterminados para o bem do mundo que VEJA representa, um mundo uníssono, que avança na direção de um cenário globalizado de conseqüências únicas, perfeitas e sem objeção, onde uma nova religião começa a concretizar-se com rezas e acordos de compra e venda. É por isso que para vocês nosso presidente Hugo Chávez leva uma lista longa de qualificativos indesejáveis, como tirano, ditador, assassino, populista, palhaço, louco, etc, e Bush, George W. Bush, o mesmo da guerra no Iraque, é apenas um homem preocupado pela harmonia e a paz do mundo.

Pois bem, senhor Civita, nesta nova carta que agora lhe envio -e que sei que não será publicada na VEJA-, além de expressar-lhe os sentimentos acima descritos quero também aproveitar para fechar com duas coisas importantes.

A primeira é a formulação de uma queixa oficial contra sua empregada Daniela Pinheiro, quem entre a grande quantidade de mentiras que escreve no seu artigo "Com dinheiro do povo", edição N° 1941 de 01 de fevereiro de 2006, assegura que "o embaixador da Venezuela admitiu na semana passada que é possível que Chávez assista ao desfile da Marquês de Sapucaí", quando na realidade o que foi dito foi que era pouco provável que o presidente assistisse -mas é claro, tudo vale quando se trata de jornalistas que nã0 se apegam à objetividade, mas sim à interpretação jornalística pouco desapropriada de interesses... serão ¿econômicos ou ideológicos? -¿pode o senhor sanar esta dúvida, senhor Civita?

A segunda é uma simples recomendação, e a inicio com uma pergunta: ¿ouviu o senhor alguma vez Alfredo Bryce Echenique quando se refere à posição humana do homem diante da vida e da realidade? Repare, ele disse a respeito, que "na vida, a única objetividade possível é a subjetividade bem intencionada". Nós cremos o mesmo do jornalismo, cremos que este é o sentido exato que deve praticar-se nesta profissão frente a esse contra-sentido da objetividade a secas. ¿Por quê? Simples. Porque o jornalismo não é um templo de deuses, mas uma praça de vizinhança.

Julio García Montoya

Embaixador