11 de jul. de 2006

A cabeçada de Zidane , uma história de honra e racismo

Zélia Leal Adghirni (*)

Não entendo nada de futebol. Só sei quando é gol porque todo mundo grita. Mas entendo um pouco de cultura árabe e muçulmana. Sou jornalista e morei quase dez anos anos no mundo árabe onde sempre fui tratada com o maior respeito e consideração. E sei bem o que pode ofender profundamente um muçulmano.



Quando vi aquela terrível cabeçada do Zidane no peito de Materazzi não tive dúvida. Foi reação a um insulto. O que teria dito o jogador italiano para deixar o francês/argelino/kabyle daquele jeito? Só podia ser um insulto à sua religião ou à sua família. E isso, muçulmano nenhum tolera. Imediatamente comecei a ligar para meus amigos muçulmanos de Brasília. Eles tinham a mesma convicção: insulto da mais grave potência. Zidane não teve dúvida. Preferiu perder a Copa do que levar desaforo para casa.



Passada a euforia da vitória italiana, a cerimônia oficial da entrega das medalhas, o constrangimento dos “Bleus” sem a presença do capitão do time, e ainda sob o impacto da cabeçada do Zidane, os comentaristas de futebol começaram a tentar explicar o que parecia inexplicável. A imagem rolou e desenrolou dezenas de vezes na telinha da TV. Sob os mais diversos ângulos, dezenas de câmeras captaram o tresloucado gesto. E eu, que não entendo e não gosto de futebol, fiquei ali, diante da TV, até de madrugada.



O que teria dito o Materazzi que, seguindo Zidane a alguns passos de distância, murmurava coisas que não podíamos ouvir (não seria o caso de chamar os meninos da Globo para fazer a leitura labial?) para que o galante rapaz de origem argelina enfurecesse daquele jeito e como um touro selvagem irrompesse com uma cabeçada no peito do italiano...



Começaram a surgir algumas hipóteses: que Materazzi teria chamado Zinedine Zidane de terrorista. Que Materazzi teria chamado a irmã de Zidane de prosituta (certamente não seria este termo politicamente correto mas um sonoro putana, que na língua italiana ecoa com vibrações fantásticas). Até agora ninguém sabe o que realmente aconteceu e Zidane ainda não se pronunciou.



A mídia, no mundo inteiro repercutiu o fato. Título do New York Times : “Uma estrela se quebra, a França declina e a Itália se regozija", qualificando de vergonhoso o último jogo de Zizou quando poderia ter sido um glorioso coroamento.



As mais severas críticas contra o capitão da equipe francesa vêm da Alemanha, país sede do campeonato mundial. Bild, o jornal de maior tiragem, com 12 milhões de leitores, afirma que “Zidane é o responsável pelo aspecto mais sujo do nosso Mundial”. E deplora que ele tenha destruído sua auréola de santo.


Mas o mais grave não se passou no estádio. Nem na cabeça de Zidane. Ele sempre lidou bem com aquilo que o diferençava de um verdadeiro francês. Não cantava a Marseillese, mas beijava a camisa do time quando fazia um gol. O mais grave se passou na cabeça de alguns franceses que engolem o gênio da raça de Zidane no futebol mas não engolem sua raça estrangeira.



Zinedine Zidane nasceu na França, em La Castellane, bairro miserável de Marseille, filho de pais de nacionalidade argelina e etnia kabyle. Os Kabyles são os povos primitivos da Argélia como os Berberes são do Marrocos. Eles foram convertidos pelas guerras santas da islamização e depois colonizados pelos franceses que ficaram quase cem anos na Argélia. Foi preciso uma guerra para tirar os franceses de lá.



Anos depois, no boom da industrialização francesa, os argelinos, assim como tantos ex-colonizados foram para a França trabalhar nas fábricas , nos serviços de higiene pública, como pedreiros, operários, porteiros, etc. enfim aquela mão de obra humilde e mal paga que os franceses não queriam e não precisavam fazer. E ali ficaram, tiveram filhos, os filhos cresceram, tiveram mais filhos, mas a integração com a sociedade francesa resta uma questão não resolvida. A prova: a explosão da revolta dos jovens dos subúrbios há alguns meses.



Zidane, o Zizou, teve sorte. Tinha o gênio nas pernas. Virou um grande jogador, um símbolo da equipe francesa, um orgulho nacional. Mas bastou um erro (lamentável, com certeza) para que esta imagem ruísse.



Quem entrou nos fóruns e chats de debates nos sites dos principais jornais franceses pôde ler frases como esta por exemplo: “Tenho vergonha de ser francês. Zidane nos sujou”. Ou então” : Árabe é isso mesmo; Zidane deveria ter ficado lá onde saiu, queimado carros nas ruas com sua gangue”. E eram muitos os insultos racistas contra aquele que até ontem era herói.


Muitos dirão: mas futebol é isso mesmo! Tem que agüentar! Pelé foi tantas vezes provocado e não reagiu... Mas talvez fosse melhor que tivesse reagido para defender sua raça. Nunca vi Pelé defender publicamente os negros. Mas lembro de uma famosa frase do maior jogador entre todos: “Pelé não tem cor, Pelé não tem raça, Pelé não tem religião”. Pelé é Pelé, uma instituição. Foi assim que ele viveu.



Mas Zidane tem o sangue quente dos povos do deserto. Ele é kabyle. É muçulmano. E coloca honra acima de todo como seus ancestrais.



“Diante do que não podia ser mais do que uma grave agressão, o senhor reagiu como um homem de honra antes de sofrer, sem pestanejar, o veredicto”, escreveu o presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, em mensagem enviada hoje a Zidane.



(*) Zélia Leal Adghirni é professora da Faculdade de Comunicação na UNB
Publicado no Blog do Noblat, em 11/07/2006

Acróstico

Página 12, 11/07/2006

CONJETURAL

Por Juan Sasturain

A Z.Z. en el vestuario de Berlín

Z umban las voces en la tarde última.
I talos cantan en la galería
n azi una vez, fascista todavía.
E s en venganza por la estirpe única

d e tus ancestros de daga y túnica.
I nvicto Aníbal, cuya valentía
n o dudó ante una Roma que temía
e n el combate, a la fiereza púnica.

Z ama fue la batalla, y la derrota
i mpuso sus rigores al aciago
d estino de los hombres y la flota.
A la soberbia, magnífica Cartago,
n o la olvidó la gloria. La pelota
e n soledad sueña con vos, el Mago.