24 de set. de 2004

Quem dá mais?

FÁBIO KONDER COMPARATO - Folha de São Paulo, 24/09/2004

São conhecidos os casos, felizmente raros, de casais sem filhos nos quais o marido complacente aceita que a mulher tenha relações sexuais com outro homem a fim de gerar uma criança, que é registrada em nome do casal como se seu filho fosse.Apesar de ser este, como diz José Simão, o país da piada pronta, e ainda que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados tenha acabado de aprovar a descriminalização do adultério, certamente não ocorreria a ninguém propor a legalização desse tipo de relação sexual, para dispor, ainda por cima, que o filho assim eventualmente gerado seja entregue de direito ao genitor masculino. Algo de análogo, porém, tem ocorrido neste país desde 1997, num campo certamente muito menos nobre do que a geração de um ser humano, mas nem por isso menos vital para o país: a exploração do petróleo.A Constituição da República, em seu art. 177, determina que constituem monopólio da União: "I . a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II . a refinação do petróleo nacional e estrangeiro; III . a importação e a exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades nos incisos anteriores". Mas a lei nº 9.478, de 1997, promulgada no quadro da privataria desencadeada pelo governo Fernando Henrique, veio permitir que a União leiloe entre empresas privadas, até mesmo estrangeiras, áreas de pesquisa e lavra de petróleo, determinando que a vencedora da licitação torna-se proprietária do produto assim extraído, podendo inclusive exportá-lo.
Poder não se abandona nem se vende. O petróleo, na verdade, não pertence à União. Pertence à nação brasileira
Está em curso no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade desse aleijão legal, proposta pelo governador Roberto Requião, do Paraná. Na primeira sessão de julgamento, o procurador-geral da República levantou, para reflexão dos julgadores, a hipótese de que o legislador, sem ferir a Constituição, teria querido limitar os efeitos do monopólio estatal à atividade de pesquisa e lavra do petróleo, sem estendê-lo ao produto resultante dessa atividade.A cogitação de Sua Excelência, lamento dizê-lo, é inteiramente descabida.Em primeiro lugar, como é óbvio, o que se espera e o que se exige do mais alto tribunal da República, no caso, é que ele julgue a lei à luz da Constituição, e não em função do que os parlamentares teriam pensado ou imaginado no momento em que a votaram.Em segundo lugar, não se cuida, no caso, de uma atividade de serviço, mas sim de uma indústria extrativa. Nesta, excluir o produto final do monopólio é esvaziá-lo totalmente de sentido.Em terceiro lugar, monopólio não se confunde com autorização administrativa para exercício de atividade econômica. À União Federal, por exemplo, compete autorizar o funcionamento de instituições financeiras no país. Mas nunca, que se saiba, para alívio da Febraban, nem mesmo no meio mais furiosamente estatizante do país, ninguém ousou interpretar essa competência federal como modalidade de exercício de um monopólio.É exatamente por isso que o parágrafo 1º do art. 177 da Constituição, introduzido pela emenda constitucional nº 9, de 1995, determina que a União "poderá contratar" a realização das atividades de pesquisa e lavra de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos. As empresas contratadas devem agir em nome e por conta da União, sendo pagas pelos serviços prestados. Mais nada. Elas não podem assumir o risco do negócio, que definitivamente não é delas. Introduzir o contrato de risco num regime de monopólio representa uma contradição insolúvel. Se se tratasse, ao contrário, de simples autorização administrativa de exercício de atividades, a União não contrataria empresa nenhuma para fazer o serviço: cada qual, de acordo com o princípio da livre iniciativa, atuaria por conta própria, quando muito sob a fiscalização do poder autorizador.Mas não é só isso. Uma Constituição não é reunião desordenada de normas, mas um todo orgânico, que obedece a um "espírito", como disse Montesquieu. Esse "espírito" do sistema é dado pelos seus princípios fundamentais. Dentre estes, deve-se ressaltar o da soberania nacional, enunciado logo no art. 1º e repetido no art. 178, no título consagrado à ordem econômica e financeira.Ora, a disponibilidade de petróleo é hoje, como ninguém ignora, questão altamente estratégica, pois a disputa pelo acesso a essa fonte de energia, cuja escassez começará a se fazer sentir dentro de poucas décadas, acha-se no centro de uma verdadeira conflagração mundial, gerando guerras e golpes de Estado em várias partes do globo. Ao disputarem o acesso a essa fonte de poder, quando localizada em território estrangeiro, as grandes potências não hesitam em lançar mão de todos os meios, do suborno de chefes de Estado à invasão armada.É nessa perspectiva global que deve ser interpretado o monopólio instituído pela Constituição nessa matéria. Soberania é poder. E poder não se abandona nem se vende. O petróleo, na verdade, não pertence à União. Pertence à nação brasileira. Seria um escárnio que as autoridades federais, a quem compete primariamente a defesa da nossa soberania, tivessem, por razões rasteiramente financeiras, a licença de leiloar o patrimônio da nação.
Fábio Konder Comparato, 67, advogado, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.

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