27 de mai. de 2004

Silêncios e cobranças

Os brasileiros defensores dos direitos humanos e dos direitos civis devem muito a Jimmy Carter, que, na Presidência dos Estados Unidos, não poupou meios diplomáticos de pressão contra as barbaridades da ditadura militar no Brasil. Tornou-se odiado pelos comandos do regime, e particularmente por Geisel, então no poder. Mas, quando lhe pareceu necessária a ação mais explícita, Carter não falou nem agiu pessoalmente. Mandou ao Brasil sua mulher, Rosalyn, que remediou a situação dos religiosos católicos sob crescente ferocidade dos militares e seus agentes civis (entre eles, alguns que hoje posam de democratas e íntegros no Congresso).
Para todos os efeitos práticos, Rosalyn Carter representava o presidente Carter. Mas não representava o Estado norte-americano. O inteligente truque dos Carter mostra que não é simples, nem mesmo quando se trata de uma superpotência em relação a um país secundário, a ingerência do representante maior de um Estado em assunto interno de outro Estado.
Os pronunciamentos que muitos têm cobrado de Lula, nas visitas a Cuba e à China, não se comparam ao caso de Carter com o Brasil. Mas a essência é muito semelhante, pela necessidade de um e outro considerarem, nas circunstâncias e acima de tudo, os interesses dos seus respectivos Estados.
Seja o que for que Lula pense dos direitos civis e dos direitos humanos em Cuba e na China, e não faço idéia do que pense, importante é que balize sua atitude pelos interesses brasileiros legítimos. O que não impede, forçosamente, cobranças por pronunciamentos políticos nos países visitados, mas desde que tais cobranças indiquem fundamentação que vá além da satisfação com algumas palavras sem mais efeito do que a retórica. De retórica que não chega aos atos e manifestações que não ultrapassam a própria festividade, no Brasil mesmo já temos para todos os gostos.
No caso da China, não há fundamentação para a cobrança. Tratou-se, apenas, de ir, aceitando as realidades chinesas em nome de conveniências comerciais e de política internacional, ou não ir por não as aceitar. Ir para criar um caso seria estúpido, nada mais.
Se não for assim, pelo menos não esqueçamos que Fernando Henrique Cardoso foi a Cuba, e os cobradores de Lula não lhe fizeram as mesmas cobranças. Fernando Henrique Cardoso foi à China, em viagem sobretudo de turismo oficial, e não de negócios como a atual, mas os cobradores de Lula não lhe fizeram as mesmas cobranças. E o pior: Fernando Henrique Cardoso fez questão de ir à posse do reeleito Fujimori, que fechara o Congresso no decorrer do primeiro mandato, instaurara a censura e prendera seus principais opositores políticos -e lá Fernando Henrique Cardoso definiu-o publicamente como "um grande democrata". Mas os cobradores de Lula nada lhe cobraram então ou depois sobre o hoje fugitivo Fujimori.
O tratamento equânime é uma forma de respeitar e aplicar os direitos civis e os direitos humanos.

Janio de Freitas, Folha de São Paulo, 27/05/2004

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