8 de nov. de 2010

Neruda na voz de plácido


Autor de O Carteiro e o Poeta, Antonio Skármeta relata a emoção de acompanhar a versão para o palco do romance

SkarmetaAntonio Skármeta ESPECIAL PARA O ESTADO – O Estado de S.Paulo

Quando as cortinas se ergueram para o início da ópera Il Postino (O Carteiro e o Poeta) em sua estreia mundial em Los Angeles, em setembro, vieram à minha memória todos os momentos que levaram essa minha obra àquele apogeu.

O Carteiro nasceu na época da ditadura de Pinochet como uma comovente lembrança no meu exílio em Berlim Ocidental, do Chile democrático que vivi e desfrutei até o golpe de 1973, que submeteu meu povo à violação de direitos humanos, deu início a um período de barbárie e enviou centenas de intelectuais para o exílio.

Ao escrever meu romance O Carteiro e O Poeta (Record), o que me impeliu foi a necessidade de recuperar o modesto e imperfeito paraíso que tinha perdido: aquele Chile onde o poeta estava próximo das pessoas e elas sentiam que o poeta falava por elas. Um país onde estávamos conseguindo aprofundar a democracia com alegria e imaginação, sem suspeitar que, repentinamente, muitos pagariam com suas vidas por esse façanha realizada com afeto.

Desde o primeiro momento, minha obra emigrou rapidamente para outros gêneros. Ainda não tinha concluído meu trabalho quando um produtor alemão leu alguns capítulos do romance e propôs-me escrever a história de Pablo Neruda e o Carteiro como um roteiro de um filme. Confuso diante da sua generosidade, eu o fiz, interrompendo a conclusão do romance. Ao entregar-lhe o roteiro, para minha surpresa, ele convidou-me para dirigir o filme. Confesso que tive alguma experiência na direção de atores de teatro nos meus tempos na universidade e mostrei que era um roteirista capaz, mas jamais tive formação acadêmica como diretor de cinema. Tudo o que conhecia da arte cinematográfica era como espectador.

O produtor encorajou-me: tratava-se de um filme de baixo orçamento e, se não saísse bom, ninguém ficaria indignado. Seria visto como um filme de um escritor que tentou fazer cinema e fracassou. Talvez fosse uma outra Alemanha, mais disposta ao risco. Não sei se hoje teria a mesma sorte. O acaso quis que o filme – de uma humildade extraordinária, produzido com atores chilenos no exílio – tivesse um sucesso inesperado.

Após sua estreia na TV alemã, o jornal Frankfurter Allgemeine comentou que era um filme “maravilhoso”, ao ser apresentado no Festival de Huelva, em 1983, conquistou o primeiro prêmio e também o do público.

O filme chamava-se Ardiente Paciencia (Ardente Paciência) e ainda hoje às vezes é exibido em um canal de TV da Europa ou num festival de cinema – patrocinado por algum curador ou produtor que o vê com simpatia.

O livro, publicado originalmente em castelhano, hoje está editado em 35 idiomas e a história foi adaptada em inúmeros países para o rádio, teatro (mais de duzentas montagens) e para o cinema por Michael Radford. Durante alguns anos, os jovens de muitos países usavam camiseta com uma das frases mais populares do livro: “A poesia não é de quem a escreve, mas de quem a usa”.

Acostumei-me a pensar que, com esta simples história de desavenças entre um grande poeta e um homem humilde, qualquer coisa poderia ocorrer, mas jamais que chegaria um dia em que ela se converteria numa ópera e que o papel de Pablo Neruda seria interpretado pelo mestre dos mestres, esse grande artista e maravilhosa pessoa que é Plácido Domingo.

Conselhos. Ao falar do seu papel, Plácido disse algo muito importante e pessoal sobre meu romance: “Há um paralelo entre a minha pessoa e o personagem de O Carteiro de Skármeta, pois sempre tento ensinar os jovens, dando conselhos”.

Dei toda a liberdade para o compositor Daniel Catán, artista mexicano que vive há dez anos em Los Angeles e já adaptou para o teatro um texto de Gabriel García Marquez, trabalhar em cima da história, de modo que ele sentiu-se encorajado no trabalho de m transcrevê-la para uma ópera.

Daniel enfrentou um desafio que o entusiasmava: fazer ópera em espanhol, uma língua poderosa que não tem muitos exemplos ilustres nesse campo. Guardando as distâncias, ele poderia ser visto como Mozart, que perseverou – e teve sucesso – para escrever óperas em alemão, quando todo mundo achava que ópera era um assunto absolutamente italiano.

Para Daniel Catán, a língua de Cervantes e de Neruda é a maneira como vemos a vida, o que fazemos com ela. “Nessa visão nos deparamos com o que é verdadeiramente importante: o amor, a felicidade e a paixão.” Ele está convencido de que uma língua é uma maneira de “ver”.

Há 15 anos, o filme italiano O Carteiro e o Poeta passou pelo tapete vermelho de Hollywood, com cinco indicações ao Oscar. Talvez ainda fosse muito cedo para um filme europeu vencer a competição (mais tarde, A Vida é Bela foi premiado) mas a verdade é que a indicação póstuma para Massimo Troisi como melhor ator não foi adiante – apesar da devoção com que sua interpretação foi recebida pelos críticos e o público norte-americano. Nessa ocasião, os membros da academia preferiram Mel Gibson e o seu Coração Valente, uma pílula amarga que até hoje não consegui engolir.

Metáforas. Massimo Troisi criou um personagem com uma alma simples e grande, incapaz de dizer tudo o que sente, mas que a luz generosa de Pablo Neruda (Philippe Noiret) começa a transformar em lampejos de metáforas verbais sua deliciosa e imprecisa gesticulação napolitana. A morte de Troisi, em consequência de um ataque cardíaco logo após o último dia de filmagem, revestiu o filme de uma carga emotiva arrasadora.

O filme franco-italiano é uma lembrança viva no mundo e os artistas que subiram ao palco da Ópera de Los Angeles tiveram que enfrentar grandes desafios: a inesquecível musica de Bacalov – premiada com um Oscar, a gloriosa interpretação de Massimo Troisi, o sólido encanto maduro de Philippe Noiret, a arrebatadora turbulência de Maria Grazia Cucinotta. Na sua versão para ópera, tem um elenco genial: Plácido Domingo como Pablo Neruda, Charles Castronovo como o Carteiro, Amanda Squitieri como Beatriz e a grande soprano chilena Cristina Gallardo-Domas como Matilde, a esposa do poeta. A obra é uma coprodução com o Le Chatelet (onde a estreia, em Paris, será em junho de 2011) e a Ópera de Viena, na Áustria.

Assisti à estreia mundial em Los Angeles e pude ver e ouvir a impressionante ovação, de pé, do público e depois ler as elogiosas críticas americanas e internacionais. Vi Plácido Domingo, beirando os 70 anos, feliz. Como autor da história, que também está com quase a mesma idade de Plácido, também senti-me como um menino no dia do seu aniversário. Como podem ver, o Carteiro toca muitas vezes. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

ANTONIO SKÁRMETA É AUTOR E ACABA DE LANÇAR EM ESPANHOL O NOVO ROMANCE UM PADRE DE PELÍCULA

QUEM É

ANTONIO SKÁRMETA
ESCRITOR

Nasceu em 1940, no Chile. Durante a ditadura no país, se exilou na Alemanha e escreveu Ardiente Paciencia. O livro inspirou o filme O Carteiro e o Poeta (1994), que teve 5 indicações ao Oscar

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