7 de jun. de 2004

Yo non creo en brujas, pero...

Obessão de Kissinger, censor da mídia, é falsificar a HistóriaNOVA YORK (EUA)07/06/2004 - No país que se apresentava ao mundo como exemplo de respeito à liberdade de imprensa, jornalistas sucumbem hoje à tentação de se tornarem meros apêndices patriotas da política externa oficial. Como Larry Rohter, em textos sobre Brasil, Venezuela e Colômbia. Ou Judith Miller, nas reportagens que tentaram tornar realidade a fantasia guerreira das armas nucleares, químicas e biológicas do Iraque.

Não é de estranhar, assim, que heróis da liberdade de expressão e da imprensa livre tenham agora de ser encontrados fora das redações. Quero render homenagem a um deles, que respeito há anos como acadêmico e autor de excepcional capacidade, rigor e talento: o professor Kenneth Maxwell acaba de demonstrar que sua integridade e seriedade intelectual não estão à venda como a de certos levianos da mídia.

Britânico de nascimento, 63 anos, esse pesquisador e historiador a quem o Brasil, Portugal e a América Latina devem obras preciosas que devassaram os autos da Inconfidência Mineira e reavaliaram o legado singular do Marquês de Pombal, deixa de ser "scholar" residente do Council on Foreign Relations para não se submeter aos que insistem em reescrever a História a fim de falsificar a própria imagem duvidosa.

Receita para esconder a verdade
Falta aos que agem assim coragem suficiente para o confronto aberto. Hoje o mais conspícuo deles é o ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Acostumou-se a agir na sombra e usar gente como ele, sem apreço pela verdade histórica ou pela honestidade intelectual. Expus aqui há dois anos, em mais de um artigo, expedientes a que recorre essa figura patética, de período melancólico, na obsessão de adulterar a História.

Primeiro Kissinger tentou impedir, para tanto indo à última instância judicial, que o público tivesse acesso ao conteúdo de documentos e gravações de sua época na Casa Branca e no Departamento de Estado. Perdeu a batalha mas protelou por mais alguns anos o sigilo oficial sobre o papel dele em episódios como o golpe do Chile, o banho de sangue na Argentina, o bombardeio secreto do Camboja, o massacre do Timor etc.

O mundo suspeita de que não passa de um criminoso de guerra. Ele próprio está consciente, desde que deixou Paris às pressas a fim de escapar a intimação de um juiz para depor, que já não pode circular livremente fora de seu país. Mas dentro dos EUA, Kissinger tem inacreditável influência e o estranho poder de censurar a mídia - como acaba de fazer mais uma vez, agora tendo como alvo o professor Maxwell.

O confronto se arrastava desde novembro, quando "Foreign Affairs" - a revista de política externa mais importante do país, editada pelo Council - publicou resenha de Maxwell sobre o livro "The Pinochet File: a declassified dossier on atrocity and accountability" (O Arquivo Pinochet: um dossiê desclassificado sobre atrocidade e responsabilidade), de Peter Kornbluh, analisando documentos até então secretos.

A duras penas, como dente podre
Kornbluh dirige o Projeto Chile do National Security Archive, grupo privado que obtém a liberação de papéis (com base na FOIA, Lei de Liberdade de Informação) e os oferece ao público, com sua análise. A resenha de Marxwell era sóbria e séria. Se elogiava o esforço para se saber mais sobre o episódio, também se distanciava das posições do autor. Mas falava do papel que Kissinger sempre tinha tentado negar.

Foi o bastante para despertar a fúria do todo-poderoso censor da História. Não veio diretamente de Kissinger, mas de seu empregado William Rogers - secretário assistente para assuntos hemisféricos (1974-77) quando Kissinger era o secretário de Estado, hoje servindo à firma Kissinger Associates, que faz "lobby" milionário pelo mundo em favor de negócios de corporações transnacionais americanas.

Num pugilato com os fatos Rogers recorreu à tática macarthista da insinuação torpe e acusou Maxwell de se juntar à esquerda (haverá crime mais hediondo?) para perpetuar o suposto mito do papel dos EUA no golpe pinochetista. Talvez não esperasse a resposta contundente do professor, que ousou referir-se ao assassinato do general René Schneider, à Operação Condor e à bomba que matou Orlando Letelier.

O golpe foi demais para Kissinger. Pois o professor atrevido sugeria até que os americanos precisam de uma "truth commission", como as criadas em países recém-saídos de tiranias e empenhados em descobrir a verdade, pois nos EUA ela "está tendo de ser extraída a duras penas, como dente podre". A resposta de Maxwell, no número de janeiro-fevereiro da "Foreign Affairs", indignou a dupla Kissinger-Rogers.

Acobertando os crimes do vilão
Uma nova carta, recebida a 4 de fevereiro e outra vez assinada por Rogers, foi lida por Maxwell. Na resposta, de seis parágrafos, ele destacou que "Rogers não pode fornecer um escudo eterno atrás do qual o patrão possa esconder-se". Mas o número de março-abril da revista deu a Rogers (leia-se: Kissinger) a última palavra. E sonegou solenemente ao leitor a resposta do professor.

É uma agressão primária à ética, mais grave ainda porque Maxwell é responsável há anos pelas resenhas sobre os temas latino-americanos da revista. Ninguém de bom senso joga pela janela um emprego como o desse professor no Council. Mas foi exatamente o que ele fez, em nome da própria integridade e de uma trajetória acadêmica que já incluiu Yale, Princeton e Columbia, jóias da coroa Ivy League.

A Universidade de Harvard, talvez tão chocada como outros admiradores dele com a injustiça insólita, apressou-se a atraí-lo para o Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos. Maxwell sai de Nova York mas continua próximo, em outra grande instituição exemplar. E na certa não nos privará das colaborações regulares para "New York Review of Books", outra publicação respeitada internacionalmente.

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